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Concreto de cannabis: das pontes romanas a um possível material do futuro

 

Foto: Thomas Noceto/BC Architects

Muito preconceito e contradições envolvem a história da Cannabis sativa pelo mundo. Estima-se que o cânhamo tenha sido uma das primeiras plantas a serem cultivadas pela humanidade. Arqueólogos encontraram remanescentes de tecidos de cânhamo na antiga Mesopotâmia (atualmente Irã e Iraque), que remontam ao ano 8.000 aC. Há registros na China, entre 6 e 4 mil aC, quanto ao consumo das sementes e óleos. Com a chegada à Europa, seu principal uso era para a fabricação de cordas para navio e tecidos. Inclusive as velas e cordas dos navios de Cristóvão Colombo eram desse material, os primeiros livros após a revolução de Gutemberg e muitas das pinturas de Rembrandt e Van Gogh foram feitas de cânhamo.

Para a construção civil, seu uso também não é novo. Uma argamassa feita de cânhamo foi descoberta em pilares de pontes construídas pelos merovíngios no século VI, onde hoje é a França. Sabe-se que os romanos adicionavam as fibras do cânhamo para reforçar as argamassas de suas construções. Hoje em dia, ainda que existam entraves legais em muitos países, a utilização do cânhamo como um material da construção civil tem tido resultados animadores, com pesquisas evidenciando suas boas características termoacústicas e sustentáveis. O cânhamo pode ser moldado como painéis fibrosos, revestimentos, chapas e até como tijolos.

Foto: BC Archtects

 

É importante iniciar pontuando que cânhamo e maconha pertencem à mesma espécie (Cannabis sativa), embora sejam variedades originais de diferentes cruzamentos e seleções. A maconha possui porcentagens mais altas, de até 20%, de THC (tetra-hidrocanabinol), que é a principal substância psicoativa, localizada sobretudo na flor da planta. O cânhamo industrial, por sua vez, é cultivado por suas sementes, fibras e caule, e contém cerca de 0,3% de THC, que não é suficiente para surtir algum efeito em uma pessoa.

O cânhamo demanda pouca água para crescer e, portanto, não requer irrigação artificial, e cresce aproximadamente 50 vezes mais rápido que uma árvore. Após colhidas e cortadas, as plantas são secas por alguns dias antes de serem agrupadas e despejadas em recipientes com água, o que incha os caules. Quando secas, as fibras podem servir, entre outros usos, para a produção de papel, tecidos, cordas, embalagens biodegradáveis, biocombustível e materiais de construção. Nesse último caso, o material pode ser utilizado como um isolante termoacústico, tal qual uma lã de vidro ou rocha, ou como o concreto de cânhamo, muito chamado de hempcrete ou hemp concrete. Usando betoneiras, mistura-se o cânhamo, calcário em pó e água, para obter uma pasta espessa. Através de reações químicas entre os componentes, a mistura se petrifica e transforma-se em um bloco leve, porém bastante resistente. Para a confecção de paredes, a mistura pode ser disposta como blocos, pulverizada ou despejada em formas lineares, no mesmo método das paredes de taipa.

Foto: Thomas Noceto/BC Archtects

A inovação envolvendo o concreto de cânhamo como material de construção é sua função como um material de desempenho múltiplo, substituindo inteiramente os agregados minerais, usados em concretos convencionais, enquanto em aplicações históricas as fibras naturais eram adicionadas principalmente em quantidades escassas a concretos e argamassas, por exemplo. para evitar retrações em gesso ou tijolo de barro.  Quando curado, retém uma grande quantidade de ar, com uma densidade que equivale a 15% do concreto tradicional, sendo portanto um ótimo isolante térmico e acústico. Uma característica interessante é que se trata de um material ao mesmo tempo isolante térmico e com boa inércia térmica. Ou seja, ainda que leve e poroso, o Hempcrete pode armazenar rapidamente energia, mas liberá-la paulatinamente, sendo uma opção interessante para climas com alta variação de temperatura entre dia e noite. Também apresenta boa resistência ao fogo, é atóxico e possui resistência natural ao mofo e insetos. Há pesquisas, inclusive, que apontam o hempcrete como um material carbono-negativo, que além de compensar o que é emitido na sua produção, chega a estocar carbono.

Para atingir suas propriedades termoacústicas, o material necessita “respirar”, isto é, ter interação entre ambiente interno e externo – isso permite que o cânhamo absorva e disperse o vapor de água (umidade), e amorteça as flutuações de temperatura. Assim, as paredes de hempcrete podem até receber revestimentos, contanto que eles permitam essas trocas.

O desempenho mecânico do concreto de cânhamo é, entretanto, bastante inferior ao concreto tradicional ou ao aço. Tem resistência a compressão de 2 MPa, quando não excede uma densidade de 1000 kg / m2, o que é comparável a tijolos de adobe, por exemplo. Funciona melhor como uma vedação do que como paredes auto-portantes. Outras desvantagens em relação a alvenarias comuns é o tempo de cura, o que pode ser amenizado com o uso de tijolos. Além disso, continua sendo um produto mais caro e há pouca disponibilidade de informações e mão-de-obra para trabalhar com esta nova tecnologia. 

Ainda que isso esteja mudando aos poucos, grande parte da carência de estudos técnicos sobre esse material ocorre por conta de legislações. A história mostra que, mais do que por evidências científicas, a guerra contra a cannabis foi motivada por fatores raciais, econômicos, políticos e morais. E a mesma proibição à droga muitas vezes vale às plantas que não serviriam para o uso recreativo. Aos poucos, o mundo vem reconsiderando algumas proibições e há países com legislações que permitem o cultivo de plantas de cannabis para uso medicinal e até mesmo recreativo. Atualmente o principal produtor mundial de cânhamo é a China, que cultiva mais de 70% do total mundial, mas há outros países com produções relevantes.

Pesquisas, teste e experimentações são imprescindíveis para tornar esse material tão promissor mais popular e barato para um uso massivo na construção civil. E, talvez, fazer com que uma das plantas cultivada há mais tempo pela humanidade possa se tornar um material de construção sustentável e eficiente do futuro.

 

Matéria publicada pelo Archdaily em 26/07/2020

 

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