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“A restauração é uma arte e uma técnica”

Arquiteto Mario Mendonça de OliveiraArquiteto com mais de 50 anos de profissão, Mario Mendonça de Oliveira, 78 anos, é uma referência no Brasil em restauro e tombamento. Formado pela UFBA, foi professor da mesma faculdade durante 32 anos e diretor da Fundação Pelourinho. No currículo, tem ainda um curso de restauração de monumento na Itália e foi também consultor do Iphan durante quase 20 anos. O Conselho de Arquitetura e Urbanismo entrevistou o arquiteto sobre sua carreira, realizações e sobre a importância do restauro e da preservação de edifícios e áreas tombadas.

 

Quais seus projetos mais conhecidos?

O Mercado Modelo foi projeto de professor Paulo Ormindo, mas a parte de cantaria foi feita por mim, assim como o reforço e a colagem, inclusive com pessoal que eu trouxe de Santa Luz. A fortaleza de Morro de São Paulo também foi projeto meu, incluindo o restauro de toda a muralha. Fiz também os projetos para as igrejas da Vitória e de São Francisco, que nunca foram executados, porque envolvem muito dinheiro. Fiz o projeto do Forte do Barbalho, além de ter participado de mais de 100 obras de restauro, algumas como projetista, consultor ou administrador, como o Solar Ferrão, que estava sob minha gestão como diretor do Centro Histórico.

Qual a importância de pensar a conservação dos centros históricos?

Estive semana passada em Brasília com professor doutor Henrique Osvaldo, que era o economista que tomava conta desse programa. Segundo ele, os centros históricos têm que ter programas habitacionais para não serem esvaziados. Quando atuei nessa área, cheguei a criar dois quarteirões de habitação, com espaço para as crianças brincarem. Depois a política do Centro Histórico mudou completamente. Acredito que é a população que dá colorido ao lugar. Quando começam a abrir barzinhos e outros estabelecimentos comerciais, nem sempre esses empreendimentos dão certo e aí a região morre.

Alguns representantes do governo alegam, por exemplo, que o IPHAN atrapalha, com a burocracia, a recuperação de parte do casario do Centro Histórico, perto do Elevador Lacerda. Isso é verdade?

O IPHAN não atrapalha. O problema é que as pessoas não querem investir. O fato é que aquela parte toda da cidade está doente, ficou esvaziada da sua atividade. No momento em que tiraram o Centro Administrativo dali deram um tiro de misericórdia no coração de Salvador. Eu não sou contra que tenham feito o CAB na Paralela, mas deveriam ter criado outro processo para não ocorrer o esvaziamento do local.  E lembro que foi o IPHAN que investiu naqueles escoramentos de imóveis do Centro Histórico, porque os donos nem isso queriam fazer. Porque ninguém quer investir mais na Cidade Baixa, o que é uma pena.

Salvador é uma cidade com muitos edifícios tombados. No entanto, muitos deles não passam por um processo de restauro, ficando abandonados e perdendo características que deveriam ser preservadas. O que pode ser feito para evitar essa situação?

Eu acho que o problema, além de dinheiro, é de mudança de mentalidade. Durante muito tempo figuras como Vanderlei de Pinho lutaram muito pela defesa do patrimônio, mas as pessoas não tinham muita consciência disso e nem orgulho de ter um monumento tombado, do charme que é morar numa casa protegida no Centro Histórico. Muitos acreditam que é o governo que tem que consertar. E não é. A lei de tombamento não diz que o imóvel passa a ser propriedade do Estado, continua sendo particular. O que o tombamento cria é restrição de uso e de modificação, para que não sejam violadas as características do monumento. O direito à memória é direito à cidadania. É muito bom o cidadão sentir que a sua cidade é charmosa porque tem história. Nós temos esta aura de passado, que faz de Salvador uma cidade particular e muito visitada. Não fossem seus monumentos, o Centro Histórico, reconhecido pela UNESCO como patrimônio da humanidade, não atrairia tantos turistas. Ao governo compete dar uma ajuda, mas a responsabilidade é de seus proprietários.

Existe um processo específico para dar entrada no processo de restauro?

Sim. Teoricamente quem restaura é quem é proprietário, claro que se é um edifício em uma área tombada é diferente. No Pelourinho, por exemplo, existem dois tipos de tombamento. O individual, onde o monumento é tombado na sua integralidade, porque ele é importante não somente na paisagem da cidade, mas também como testemunho de um sistema de vida. O outro é o tombamento de um conjunto. Talvez individualmente um determinado edifício não tenha um valor artístico excepcional, mas ele tem valor histórico, compõe o ambiente, por isso é tombado em conjunto com outros.  Nesse caso, as pessoas têm mais liberdade de manejar o edifício internamente, podendo adequá-lo à melhor condição do conforto aos tempos modernos. Mas mesmo um edifício antigo e que é tombado individualmente, o IPHAN admite que se façam pequenas adaptações, como colocar banheiro, por exemplo, ou certos equipamentos de conforto, desde que eles não venham descaracterizar o conjunto.

A região do Comercio foi tombada pelo Iphan. O senhor acredita que um processo de restauro seria fundamental para a revitalização econômica e social da região?

Sim. Mas as pessoas ficam esperando sempre que o governo faça isso. Nós sabemos que nossa área cultural é desprestigiada. O orçamento em relação aos outros ministérios é minúsculo.  Mas existem saídas, como a Lei Rouanet, na qual os investidores podem reduzir o imposto de renda investindo em cultura. Mas para isso é preciso haver projeto, é preciso haver iniciativa.

A Bahia conta com uma quantidade adequada e capacitada de profissionais para realizar obras de restauro? Essa capacitação é feita aqui no Estado?

Sim, a Bahia é o Estado que tem mais profissionais, porque temos as melhores pós-graduações do Brasil em conservação do patrimônio. Mas para trabalhar com monumento é preciso ser arquiteto, profissional que trabalha com a criação e otimização do espaço. É verdade que existem algumas pós-graduações pelo Brasil, mas quem tem mais história e tradição na área de conservação de patrimônio é a Bahia.

Trabalhar com restauração é uma arte?

É uma arte e uma técnica. Quando você tem que restaurar é porque a matéria do edifico está se degradando. A madeira apodrecendo, o reboco caindo, a pintura se desfazendo e as infiltrações tomando conta de tudo. Eu sempre considerei que a restauração é uma atitude cultural, mas é também um trabalho de caráter técnico e científico. E foi em nome disso que eu criei, em 1983, quando começou nossa pós-graduação na UFBA, um laboratório que hoje é conhecido no Brasil inteiro e no exterior. E quando me chamam para dar consultoria na Bolívia, Nicarágua, Costa Rica, é em função do reconhecimento do trabalho que a gente faz aqui. E esse trabalho hoje em dia é um laboratório.

Qual o grande diferencial do laboratório?

O Núcleo de Tecnologia da Preservação e da Restauração foi o primeiro da América do Sul. No Brasil, já começam a aparecer alguns que são crias do nosso, como no Pará, comandado pela professora Tais Caminha Sanjado. Lidamos com química, botânica, engenharia mecânica e resistência dos materiais. Partimos do princípio de que não se pode restaurar alguma coisa se você não conhece as propriedades físicas e químicas do material. Eu acredito, e tenho demonstrado isso em minhas palestras, na importância da ciência ao lado da crítica e da teoria.

Como é a dinâmica desse laboratório?

Convidamos pessoas de outras áreas para atuar no laboratório. Em meus cursos de restauração que fiz fora, tive a oportunidade de aprender um pouco de geologia, petrografia, química, botânica e mineralogia, porque o restauro é uma arte interdisciplinar. O que eu não tenho no meu laboratório, eu busco nos outros e a gente troca muito conhecimento. Nesses anos todos, eu já consegui convencer colegas para esse grande propósito, que é o de conservar a memória, e eles ficam vibrando.

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