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Reconhecimento das qualificações profissionais: conheça o relato da arquiteta e urbanista Gianna Cerqueira sobre a homologação de seu diploma na Espanha

Depois de um longo processo com provas e elaboração de projeto, a arquiteta conquistou o direito de atuar na Espanha.

Gianna Cerqueira
Gianna Cerqueira

Gianna Cerqueira mudou-se para a Espanha, em novembro de 2000, menos de dois anos após formar-se em Arquitetura e Urbanismo pela UFBA. Cinco anos após chegar à Europa, Gianna recebeu a informação de que a homologação de seu diploma estava condicionada à realização de requisitos formativos. Somente em junho de 2016, nove anos depois, Gianna, finalmente, conseguiu finalizar o processo de homologação.  Nesse intervalo, a arquiteta trabalhou para construtoras colaborando no gerenciamento de obras e, por meio dessas empresas, iniciou o contato com os escritórios de arquitetura responsáveis pelos projetos e foi conquistando espaço para desenvolver sua carreira na Espanha.

É senso comum que a homologação de diplomas no Brasil é muito burocrática e morosa, a experiência de Gianna nos mostra que também na Europa, em particular na Espanha, esse processo é bastante complexo. Talvez, ainda mais rigoroso que no Brasil. Aqui o procedimento de registro de profissionais formados no exterior é regulado pela Resolução do CAU/BR Nº 87/2014. O primeiro passo a ser seguido é revalidar o diploma obtido no exterior junto a uma instituição pública de ensino superior. Aqui na Bahia a única credenciada é a UFBA. O passo seguinte é, de posse do diploma já revalidado conforme os regramentos acadêmicos, o profissional requerer o registro junto ao CAU, onde a Comissão de Ensino e Formação analisa a documentação, conforme a Resolução 87, e emite parecer técnico que é submetido ao Plenário. Estando regular, o processo aprovado é encaminhado ao  CAU/BR para ser homologado, última instância de aprovação.

Em entrevista ao CAU/BA Gianna Cerqueira nos conta como foi todo o processo e o que foi necessário para conquistar a homologação e o direito de trabalhar como arquiteta na Espanha.

CAU/BA: Quando você foi para a Espanha já havia iniciado sua vida profissional aqui no Brasil?

Gianna Cerqueira: Sempre consegui conciliar os estudos de arquitetura com estágios e, cursando a faculdade, pude colaborar com escritórios de arquitetos, construtoras e com produção científica. Depois da formatura comecei a trabalhar na SAEB (Secretaria de Administração do Governo da Bahia), na Coordenação de Estudos e Projetos. Ano e meio depois, renunciei a tudo, e vim para a Espanha.

Projeto apresentado por Gianna Cerqueira no processo de homologação
Projeto apresentado por Gianna Cerqueira no processo de homologação

CAU/BA: Por que decidiu mudar-se para a Espanha?

Gianna Cerqueira: Naquela época, eu, recém-formada, me deparei com um mercado de arquitetura bastante difícil, que me deixou um pouco frustrada e desanimada. Isso me levou a buscar uma outra alternativa. Então me matriculei em um Master em Criação Digital e Comunicação Multimídia na Universidade Politécnica de Valencia. No entanto, a ideia não era abandonar o setor, tanto que trouxe na mala toda a papelada legalizada por via diplomática para, aqui na Espanha, homologar o meu diploma. Ouvi conselhos de outras pessoas que já tinham passado por esta experiência.

Além disso, ainda no Brasil, tinha conseguido um contato para estagiar com um bom arquiteto espanhol. Chegando lá, frequentei o escritório dele durante uns poucos meses até que surgiu uma boa oportunidade de trabalho por conta do curso que estava realizando. Entre o trauma do mercado brasileiro e a boa oportunidade laboral, terminei ficando afastada da arquitetura por algum tempo.

Naquela época, ao contrário da realidade de hoje, o mercado imobiliário na Espanha estava no auge, agitado, inflamado mesmo, e a paisagem estava repleta de gruas e obras. Mais recentemente, quando eu decidi que deveria insistir em ser arquiteta, não foi difícil conseguir um emprego na área.

CAU/BA: Como é o processo de homologação do diploma para que um profissional formado em outro país passe a atuar na Espanha?

Gianna Cerqueira: Depende do país. O que é comum para todos, é que, para exercer a profissão de arquiteto na Espanha, é obrigatório estar inscrito no Colégio de Arquitetos do território onde for trabalhar. Um arquiteto formado fora da União Europeia, tem que ter o diploma homologado para poder ser inscrito no colégio profissional. A homologação outorga os mesmos direitos e obrigações que os arquitetos formados na Espanha e, como é lógico, a atividade profissional estará regida pela legislação e normatização espanholas.

No meu caso, dois anos depois de ter entregado a documentação pertinente ao “Ministério de Educación”, a homologação do meu diploma de Arquitetura e Urbanismo, expedido pela Universidade Federal da Bahia, ao título espanhol de Arquiteto, foi condicionada à previa superação de requisitos formativos complementares. Tive que escolher uma universidade pública para realizar os ditos requisitos, que, diga-se de passagem, de “formativos” não tinham nada. Na Universitat Politècnica de València exigiram a realização de uma prova de conjunto específica e, posteriormente, a elaboração de um projeto final de graduação (chamado PFC). Não há tutoria nem apoio docente. Ante qualquer questionamento ou pedido de ajuda, a resposta era sempre a mesma: – Você não é arquiteta, então se vire!

A prova de conjunto específica consiste em quatro exames sobre os conteúdos das matérias “troncales”, que são as matérias comuns e obrigatórias em todas as faculdades de arquitetura da Espanha: ACONDICIONAMIENTO Y SERVICIOS, mais ou menos equivalente a Instalações e Conforto Ambiental; ESTRUCTURAS DE EDIFICACIÓN que é, basicamente, projeto e cálculo de sistemas estruturais; CONSTRUCCIONES ARQUITECTÓNICAS, que se parece às nossas matérias de Materiais de Construção e Técnicas Construtivas; e URBANISMO.

Os exames são realizados em dois dias, com quatro horas de duração cada um. É necessária a aprovação nas quatro provas. Caso haja reprovação em uma delas, é imperativo refazer todas elas outra vez. Superada esta fase, que pode durar alguns anos, se receberá o tema para começar a fazer o projeto.

Projeto apresentado por Gianna Cerqueira no processo de homologação do diploma
Projeto apresentado por Gianna Cerqueira no processo de homologação do diploma

O PFC é um exercício projetual que permite demonstrar a capacidade do “estudante/arquiteto” para o exercício da profissão. Considerando as características contextuais de um lugar efetivo e específico, deve-se demonstrar o compromisso que a arquitetura deve ter com o meio no qual se realizará e alcançar um nível máximo possível na sua materialização e definição construtiva. É exigida a elaboração de Projeto Estrutural, muitos detalhes construtivos e até o desenvolvimento total do conjunto das instalações.

Uma vez superados estes requisitos, a faculdade emite um certificado que deve ser enviado para o Ministério de Educación para a expedição da credencial de homologação A partir daí o diploma brasileiro passa a ter os mesmos efeitos que o espanhol.

Mas esse processo está prestes a extinguir-se. Aqui na Espanha a estrutura curricular do ensino de Arquitetura está mudando constantemente para adaptar-se aos padrões do Espaço Europeu de Ensino Superior (EEES). A grande novidade é que, para exercer a profissão de Arquiteto, não basta completar o curso de graduação (que tem a duração de 5 anos), mas também é necessário cursar um Master, que habilita o exercício da profissão (mais 1 ano). Com isso, surgiram novos requisitos para a homologação de diplomas estrangeiros.

Agora, o interessado deve solicitar, em uma universidade espanhola, a convalidação das matérias superadas no programa do país de origem e, posteriormente, cursar as matérias que faltarem para completar o programa espanhol de graduação. Depois disso, para poder exercer a profissão, deverá cursar o Master e receber um título espanhol ou solicitar a homologação ao título de Master.

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Projeto apresentado por Gianna Cerqueira no processo de homologação do diploma

CAU/BA: Saberia nos dizer se os demais países da Comunidade Europeia também têm as mesmas regras?

Gianna Cerqueira: A recente criação do Espaço Europeu de Ensino Superior tem como objetivo fazer com que os diferentes sistemas de ensino superior sejam compatíveis, comparáveis e coerentes entre si. Por isso, suponho, que os processos de validação também vão ter regras similares. Mas ainda é um momento de transição.

CAU/BA: Para os profissionais diplomados em outros países da Comunidade Europeia a homologação é automática?

Gianna Cerqueira: O cidadão da União Europeia, EEE e Suíça, tem que tramitar um “reconhecimento de título” para poder se inscrever no Colégio de Arquitetos do território correspondente, e assim poder exercer a profissão na Espanha. É um processo diferente da homologação, muito mais simples, que facilita a mobilidade geográfica dos profissionais no território europeu. Não tem efeitos acadêmicos, só profissionais. Inclusive esta tramitação é feita por um órgão distinto, o Ministério de Fomento.

CAU/BA: Qual foi a maior dificuldade que encontrou no conteúdo solicitado nas provas?

Gianna Cerqueira: A maior dificuldade foi juntar o material de estudo. Não tinha um apoio docente que pudesse me orientar neste aspecto.  Além disso, os sistemas construtivos na Espanha não são iguais aos do Brasil. Se o clima é diferente, os materiais são utilizados de forma distinta, para satisfazer outras condições de conforto. São necessários outros tipos de equipamentos, como por exemplo, a calefação, e, por isso, o isolamento térmico e a eficiência energética são exigências que não podem ser ignoradas. A Normatização, incluindo o Código Técnico da Edificação, é muito exigida, obedecida e respeitada.

O conteúdo parecia infinito, englobava uma grande parte do programa didático do curso de arquitetura da Espanha. Eu não sabia exatamente qual era, onde consegui-lo, nem por onde começar. Era uma missão impossível, e eu acreditava que tudo aquilo era proposital. Sempre ouvia o comentário de que as faculdades tinham ordens superiores para não aprovar ninguém. Nunca comprovei, mas o próprio sistema aponta, delata e comprova. Fiz diversos cursos e isso foi a minha salvação.

CAU/BA: E no projeto?

Gianna Cerqueira: O projeto também é bastante complicado. A maioria dos aspirantes dedicam muitas horas de trabalho e, quando vai apresentá-lo, em cinco minutos é descartado de uma forma humilhante, sem dó.

Mas eu encarei de outra maneira, porque eu já estava segura das minhas possibilidades, dos meus critérios, dos meus conhecimentos e da minha capacidade de pesquisa. Eu tive a sorte de poder trabalhar muitos anos no setor da construção na Espanha, em obras de diferentes envergaduras, desde residências até um moderno Estádio de Futebol com capacidade para 75.000 espectadores. Isso me permitiu conhecer, na prática, os processos e sistemas construtivos, trocar experiências com diversos profissionais da área e estar em contato com projetos e com as posturas normativas.

Elaborei o projeto com muito ânimo. Encarei-o com o mesmo empenho e comprometimento que teria se fosse um projeto real, estudando cada detalhe, dedicando-lhe muitas horas de trabalho. Tentei entender os processos e tendências da Faculdade, os critérios acadêmicos de avaliação e até os gostos relativos à representação gráfica. O resultado foi bastante positivo por parte da banca examinadora. Mas nem sempre é assim. No meu caso, fui a única.

CAU/BA: Na sua opinião, a homologação de diplomas de arquitetos formados em outros países poderia ser simplificada, ou realmente acha que o rigor que encontrou era necessário?

Gianna Cerqueira: Não vou dizer que é impossível, mas é realmente difícil homologar o diploma de arquiteto na Espanha. Eu demorei muitos anos para superá-lo, porque não podia deixar de trabalhar para estudar. Aproveitei o período de crise, que quase não há trabalho para arquitetos, para tirar esta pendência das costas e alcançar meu escopo. Realmente, é preciso muito tempo e uma dedicação quase exclusiva. Ou, o que não foi o meu caso, dinheiro para contratar serviços profissionais que te ajudem (o mercado hoje em dia está cheio destas ofertas).

É evidente que este sistema de homologação, baseado no “salve-se quem puder”, sem apoio acadêmico, foi criado para evitar o acesso de profissionais estrangeiros e para proteger o mercado espanhol, principalmente depois da explosão da bolha imobiliária que deixou o setor parado e a maioria dos arquitetos espanhóis desempregados.

Acho que um arquiteto que quer exercer a profissão em outro país distinto do que estudou, deve assimilar as particularidades do lugar e, para isso, é imprescindível muitas horas de estudo, formação complementar e prática. Acho muito importante que um país avalie estes profissionais antes que atuem no seu território. Mas o procedimento não necessita de ser tão cruel, e deve oferecer caminhos, não digo fáceis, mas possíveis e lógicos, para a adaptação de profissionais estrangeiros. Porque estes, certamente, têm motivos justos para estarem em um país diferente do seu. Vamos aguardar para ver como serão os novos critérios de EEES.

CAU/BA: Qual diferença você percebe como principal entre a formação dos arquitetos brasileiros e espanhóis?

Gianna Cerqueira: Eu acho que, no Brasil, na prática, o arquiteto divide as suas atribuições profissionais e responsabilidades técnicas com engenheiros e construtoras. Na Espanha, geralmente, o arquiteto se responsabiliza pelo conjunto do projeto. A arquitetura continua sendo multidisciplinar, mas é o arquiteto quem contrata e coordena todos os especialistas envolvidos. Essa diferença também é notável na formação acadêmica.

Por exemplo, no projeto final de graduação, além de ter que demonstrar desenho e linguagem formal, o futuro arquiteto espanhol tem que entregar elementos construtivos bem definidos e detalhados, como estrutura, instalações, climatização, proteção contra incêndios, acessibilidade, etc. A técnica é um elemento imprescindível na idealização arquitetônica, e é determinada como um conjunto, suprimindo incompatibilidades e interdependências entre os projetos de diversas disciplinas. Também, apesar do seguimento do projeto, por parte dos professores, é imperiosa uma apresentação gráfica de qualidade, onde o arquiteto demonstre ser capaz de sintetizar e transmitir sua concepção e o seu projeto. Não sei como estão estas exigências, hoje em dia, no Brasil.

Gianna Cerqueira
Gianna Cerqueira apresentando seu projeto para homologação do diploma em Valencia na Espanha

CAU/BA: Recentemente o CAU/BR realizou uma pesquisa no Brasil, onde ficou demonstrada que a maioria das pessoas desconhece a necessidade do arquiteto nos projetos de construção e reforma. Na Espanha como o profissional é percebido pela população?

Gianna Cerqueira: Se um cidadão quer construir legalmente é indispensável um projeto assinado por um arquiteto, com o visto do colégio correspondente (ou, dependendo das características e do tamanho da obra, de outro técnico habilitado para tal, como o engenheiro). Dentro da legalidade, não tem para onde correr.

Em relação às reformas, também se exige algum tipo de licença. Dependendo da complexidade, a figura do arquiteto também é exigida.

Mas, visto de outro ponto de vista, o cidadão que desconhece a necessidade do arquiteto, quando se depara com a obrigação de contratá-lo, não entende o verdadeiro benefício dos serviços e muito menos os honorários que há de pagar. Vê o arquiteto como uma carga.

CAU/BA: Se você voltasse para o Brasil hoje, como acha que essa experiência fora do país influenciaria seu trabalho?

Gianna Cerqueira: Eu cheguei aqui na Espanha no momento do boom imobiliário, tudo parecia um conto de fadas, as empresas construtoras e escritórios de arquitetura viviam um momento de glória, muito trabalho, bons honorários e também, cabe dizer, pouca qualidade técnica.

De repente, a bolha explodiu e vi estas mesmas empresas fecharem as suas portas. As obras ficaram inacabadas. Sete em cada dez arquitetos ficaram sem trabalho. Os recém-formados, ficaram anos sem conseguir inserir experiência no currículo. A profissão do arquiteto ficou totalmente desvalorizada.

Com isso, aprendi a ser constante, ter cautela, primar pela qualidade, pela legalidade e pela correta gestão econômica da atividade profissional, e, dessa maneira, contribuir com a valorização coletiva da profissão. Isso é a bagagem que levaria para o Brasil.

 

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